A velha sobe a custo, com o chinelar com que vem sendo hábito. Vem definitivamente para o meu bem, mas para vos ser sincero é o anjo da guarda mais chato e insuportável que Deus inventou. Deve ter sido feito à pressa entre dois milagres e assim ficou: de curva nas costas, uma cara medonha e a vontade de salvar o meu mundo.
Eu sei o que vai acontecer quando entrar. Aquece-me qualquer coisa para comer, enquanto me grita aos ouvidos algo que vou ignorar. Não me perguntem o que diz, porque aqueles sons nunca me chegam aos ouvidos em forma de palavras. Tento bloquear tudo aquilo com um “Eu estou bem, já disse…” que faz companhia quase sempre a um pequeno silêncio que lhe é posterior. “Eu estou bem” é a frase que mais vezes me sai da boca, metade delas na tentativa de me convencer a mim mesmo, a outra metade para tentar argumentar algo a favor dessa pobre alma que sou eu. E no fim, a velha vai usar uma frase feita fruto da sabedoria popular, a única que tem e que usa com perícia.
A porta abre. Empresto à cara um sorriso fingido para não a receber de braços vazios. A conversa começa com “Não me digas que ainda está por vestir a estas horas da tarde”. Todo o resto ignorei como já os esperava fazer. Pousa-me à frente um prato com arroz feito de cal, a julgar pela cor, e um pedaço de uma outra coisa que não me soube mal. A probabilidade de qualquer coisa saber bem a alguém que só come enlatados é bastante grande, nem que essa “qualquer coisa” seja só fruto da nossa imaginação.
“Devias procurar emprego.” Prega-me estas palavras aos ouvidos com a força de pugilista. Atirou-me ao tapete, é um facto, mas ripostei rápido para não ficar muito tempo a fazer companhia a uma alcatifa sugadora de líquidos entre os quais urina. Não vou mentir. Fiz xixi no chão em duas ou três bebedeiras recentes. “Emprego? Se ele quiser que me procure, o caminho é o mesmo. Estou bem a ver os meus programas.” Um dos meus vícios: televisão. Gosto de ver na companhia de garrafas que vão ficando vazias à medida que eu fico mais divertido. Não são só garrafas vazias, são também a última morada de alguns insectos que na tentativa de matar a sede acabam afogados e jazidos. Outro dos meus vícios: vê-los espernear no líquido sem dar um último adeus p’rá família. É assim que eu sou.
Entre esta explicação a vossas excelências, a senhora velha, com tendência sempre para envelhecer, contínua num estado rabugento. Acho que fala de mim. Tenho a certeza quando diz “Devias parar de beber.” Outro dos meus vícios: beber. Se é que já não se aperceberam. Mas tive que lhe dizer em defesa da honra que mesmo assim já não é muita “Eu não bebo quase nada”.
Tenho preguiça para discutir. Tenho preguiça para quase tudo, menos para ser preguiçoso.
Depois de terminado o sermão a velha diz-me num tom sirénico o número de um médico que aponto no rótulo de uma garrafa de gin, com a promessa de lhe ligar. Fico-me pela promessa, porque o telefone está cortado faz tempo. E eu sei que não têm de saber isto, mas o último banho que tomei foi no tempo em que tinha água em casa.
A porta bateu. Foi-se a senhora, o único ser que parece lutar por mim, e o barulho foi com ela. Deixou como recordação uma nota de vinte que guardo num bolso roto. Das primeiras coisas a romper, depois da auto-estima e da vontade. A nota é para pagar a conta da tv e comprar algo para matar uma sede que vou inventar.
É a minha vez de sair. Para comprar vinho? Para pensar no meu estado de calamidade? Para saltar de um sítio sem fundo e procurar deixar a vida? Tudo ao mesmo tempo? Provavelmente, comprar vinho. Tem sido a minha única companhia desde a morte da Clara.
Era tudo o que tinha, porque era a coisa que mais queria ter. Sim, sou possessivo nas relações. Quando ela se foi, ao lugar que era seu agora pertencem garrafas, calmantes, caridades alheias e a solidão. A solidão sentada da forma mais confortável que encontrou, a rir de tudo o que eu faço. Ri-te grande cabra que um dia até tu acabas sozinha.
Talvez não compre o vinho, talvez me mate, se a coragem tiver a medida de um copo cheio.
Johnny Almeida