Domingo, 29 de Dezembro de 2013

O sucesso do meu azar

A minha bonita residência não é bonita e quase que não chega a ser uma residência. É uma gruta pequena, onde quase não cabe a palavra “pequena” por ser tão pequena. É um buraco onde chove, se passa fome e onde os lobos vêm mijar. Foi essa situação limite que me fez caminhar, movido por uma promessa. Sem uma única moeda no bolso, rumei à cidade grande, Hingmar, onde toda a gente tem direito a um nome próprio e a dois maços de tabaco a cada dois dias.

 

Caminhava a pé, mas o atalho que me indicaram era feito de camas de faquires, o que me deu imenso jeito para ficar com os pés ensanguentados. Filho de uma víbora daquele taberneiro que se for tão bom a servir copos como a indicar caminhos, vai à falência enquanto o diabo, seu pai, esfrega um olho.

 

Apanhei boleia de um camionista. À medida que despejava palavras percebi que o que lhe faltava em dentes compensava em aldrabice. Inventava histórias de sangue azul dignas das piores mentiras já ouvidas. Que era filho de tal homem, um mecenas abastado entendido em arte, que passeava em avenidas europeias de braço dado com dondocas encaixadas em sapatos de moda e chapéus de plumas. Enfim, um sem número de coisas das quais só ele não entendia o ridículo. Confessou-me, no fim, que escolheu ser camionista por amor à profissão. Violou-me os ouvidos com aquelas suas fantasias disparatadas. E quando se calou, encostou o camião e violou-me de um forma literal e dolorosa. Deixou-me a pé, cheio de dores no rabo.

 

Recusei a boleia de um outro indivíduo porque não me conseguia sentar.

 

Fiz os vinte quilómetros que me faltavam a pé, cheio de fome e a penar-me pelo meu lamentável fado. Tive vontade de desistir, mas o que me tinham prometido em Hingmar podia fazer-me não voltar à selva de Umamerda e à minha desquerida casa. Tinha-me prometido, um tal de Zé Cigano, um homem que conheci na rua, um emprego de culto. Ia virar homem, virar gente, virar importante. Ia ser aquele de camisa branca que satisfaz os apetites, sacia as fomes aos doutores. Um feliz empregado de mesa, servo do seu cliente, com dinheiro no bolso para saciar a sua própria fome. Ó meu Deus, e a usar uma camisa branca!

 

Entusiasmado! Excitado! Fora de mim! Em êxtase… Chego finalmente à morada dada. Já estava a ensaiar a frase “Olá, sou o novo empregado. Muito gosto!” Mas a morada, dava apenas para um enorme portão vermelho, velho e amassado, que daria entrada não mais que para um sítio que não o meu. E ali estava eu, já de joelhos, a viver num faz de conta perdido algures entre o nada e tudo aquilo que se deixou por fazer. Chorei!

 

Chorei com uma filha da puta de uma intensidade que gastei toda a água do meu corpo e berrei. Berrei tanto que fiquei quase surdo só de me ouvir gritar.

 

Apoiou-me uma mão no ombro. Contei-lhe a tragédia sem uma pausa para que tivesse oportunidade para me dizer o seu nome. Ele riu-se da minha situação que tive que lhe dar um murro no peito, com a força bruta de uma preguiça. Ele continuou a rir. João levou-me então a vários sítios para eu contar a minha história. E as pessoas riam de boca cheia de riso. E pagavam-me para contar a história em tascos, snack-bares, casas do povo e grupos recreativos. Nunca mais voltei para a selva de Umamerda, nem para a gruta fria. Tenho casa e hoje, até eu, me consigo divertir com a tragédia de uma vida que já não é a minha.

 

Johnny Almeida

Publicado por Universo de Paralelos às 19:18
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De poetazarolho a 1 de Janeiro de 2014 às 08:38


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